Vinil Raul Seixas - Novo Aeon (LP Dourado Translúcido Esfumaçado Metalizado)
A história de “Novo Aeon”, lançado por Raul Seixas em 1975, ilustra a sina comum ao profeta, imagem muitas vezes associada ao baiano. Tal sina é: anunciar mensagens que se mostram além da compreensão de sua época. Quando chegou às lojas, o disco foi um fracasso de vendas. É difícil acreditar nisso hoje quando passamos os olhos pela lista de canções contidas ali: “Tente outra vez”, “Rock do diabo”, “A maçã”, “Tu és o MDC da minha vida”... A sabedoria do tempo, porém, se afirmou como sempre faz — e hoje, 50 anos depois, o álbum ganha um relançamento em vinil pela Universal Music com o merecido status de clássico.
Após o enorme sucesso de “Gita”, disco de 1974, Raul foi para Salvador preparar as canções do seu trabalho seguinte, inicialmente batizado de “Opus 666”. A ideia era ser um aprofundamento da proposta da Sociedade Alternativa lançada por Raul e Paulo Coelho nas canções de “Gita”. Um projeto que “Novo aeon” — nome que acabou sendo o escolhido para o álbum — cumpre, mas de maneira menos mística que seu antecessor. Suas letras tratam da vida de uma perspectiva mais cotidiana, mesmo quando avança sobre temas como Deus (“Paranoia”), o diabo (“Rock do diabo”) e a chegada de uma nova era cósmica (“Novo aeon”).
“Tente outra vez” (Raul/ Paulo Coelho/ Marcelo Motta) abre o disco com mensagem de superação, numa balada que esbarra na autoajuda com uma sinceridade que a impede de derrapar. Pelo contrário, ela tem poder de emocionar na forma imperativa, direta, com que seus versos destilam a mensagem. Na cartilha cinquentista de Elvis, “Rock do diabo” vem em seguida adicionando pimenta ao tempero do álbum. Escrita pela dupla Raul e Coelho, a provocação bem-humorada tem sacadas espertas na letra (“É rock/ É fuck/ É toque”) e uma interpretação inspirada do cantor.
“A maçã” (Raul/ Coelho/ Motta) é raro caso de canção de amor que aponta para o oposto da posse. Sobre a bela melodia, Raul defende num canto pungente a liberdade da amada e a própria. “Eu sou egoísta” (Raul/ Motta) desenha o medo e a mediocridade que regem a vida de grande parte da Humanidade. Do outro lado, o cantor se afirma potente em sua individualidade: “Sou estrela no abismo do espaço/ O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço”.
“Caminhos” (Raul/ Coelho) é filosofia que afirma a sabedoria do destino com imagens surpreendentes: “o caminho do risco é o sucesso”; “o da luz é o túnel”. No arranjo, Raul explora a fusão de rock e baião, que já havia trilhado antes em canções como “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, lançada no ano anterior, em “Gita”. Sátira brega que ironiza o romantismo ao mesmo tempo em que mergulha nele, “Tu és o MDC da minha vida” (Raul/ Coelho) é perfeita dos aplausos e da dedicatória iniciais até a originalíssima declaração de amor dos últimos versos: “Eu vou mandar berrar o dia inteiro que você é/ O meu máximo denominador comum”. Raul encarna com precisão o cantor popular — figura que ele em grande medida buscava ser, em seu desejo de comunicação com a massa.
“A verdade sobre a nostalgia” (Raul/ Coelho) é uma declaração de amor ao presente e ao futuro, onde “existe alguma coisa bem mais nova e menos triste”. Raul veste a roupa de um rock antigo para criticar exatamente o sentimento de que antigamente-era-melhor. Afinal, o disco traz em seu título o anúncio de uma nova era, o “novo aeon” que atravessa todas as faixas — às vezes de forma mais evidente, às vezes menos.
Escrita por Raul sozinho, “Paranoia” trata da onipresença e onisciência de Deus como mais uma esfera — inescapável, no caso — de vigilância, assunto afinado com os anos de chumbo da ditadura militar então vigente. A musicalidade lúdica que dá o rumo de boa parte do arranjo causa um efeito de estranheza ao se chocar com o tema, explodindo em tensão apenas no refrão que revela o medo. “Peixuxa” (Raul/ Motta) segue na toada sonora de leveza alegre, remetendo a “Ob-la-di, ob-la-da”, dos Beatles. Seu personagem-título é um Poseidon bonachão, e por ele se revela que o “novo aeon” também diz respeito a questões ambientais: “E quando eu olho/ O mar com petróleo/ Eu rezo a Peixuxa que ele fisgue essa gente”.
“É fim de mês” — outra assinada apenas por Raul — volta a beber dos gêneros tradicionais nordestinos, sem abrir mão da inventividade na relação com a tradição. A letra é uma investigação ácida e divertida sobre como o capitalismo molda todos os níveis da vida de quem está na sua base — essa gente que vive a agonia repetida da dureza no fim do mês. Cantada e composta por Raul e Gloria Vaquer, então casados, “Sunseed” reafirma o conceito do disco, com versos em inglês que mencionam um sino anunciando um novo tempo. Sua sonoridade e o tom da interpretação da dupla evocam algo mágico, com violão de 12 cordas e flauta doce. Curiosidade: Gloria é creditada como Spacey Glow.
“Caminhos II” (Raul/ Coelho/ Eládio Gilbraz) revisita de maneira declamada a letra de “Caminhos”, com Raul acompanhado só pelo violão de 12 cordas. Ela prepara a chegada do country “Novo aeon”, que amarra o manifesto que o disco traz, apontando sinais — como o feminismo e a contracultura — dessa nova era que estaria a caminho. Mas em vez de fazer isso de maneira panfletária, a canção de Raul, Cláudio Roberto e Motta defende uma liberdade rica, misteriosa e vasta. Uma liberdade que abarca a possibilidade de se entregar à submissão e “o direito de deixar Jesus sofrer”.
“Novo aeon”, o disco, tem assim — da abertura ao arremate — uma consistência talvez única na obra de Raul. Consistência que permite camadas de leitura diversas, das mais populares às mais filosóficas. Tudo isso com arranjos inventivos que fizeram o crítico Nelson Motta na época comparar o álbum ao clássico “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles. Não à toa, Raul afirmou repetidas vezes ao longo da vida que era seu favorito em toda sua discografia.
Repertório do LP:
Lado A
1. Tente Outra Vez
2. Rock do Diabo
3. A Maçã
4. Eu Sou Egoísta
5. Caminhos
6. Tu És o MDC da Minha Vida
Lado B
1. A Verdade Sobre a Nostalgia
2. Paranóia
3. Peixuxa (O Amiguinho dos Peixes)
4. É Fim de Mês
5. Sunseed
6. Caminhos II
7. Novo Aeon